Belo Horizonte
#Crônica: Mulheres exigem respeito, existem, resistem e jamais devem ser silenciadas
março 08, 2025Dias de luta, dias de glória. Mirela equilibrava o secador entre os dedos, como quem rege uma sinfonia invisível. O espelho refletia os cachos bem definidos que desciam pelas costas da cliente, e um sorriso de satisfação brotou no rosto de ambas. Mais um cabelo bem cuidado, mais um abraço apertado na despedida. Mais um dia vencido.
Do salão pequeno, em uma viela movimentada de Venda Nova, até a faculdade de Direto, no centro de Belo Horizonte (MG), era um longo caminho de ônibus. Ela já conhecia cada parada do MOVE, cada olhar curioso que a atravessava sem necessidade.
Havia dias em que isso pesava nos ombros, mas outros em que sorria para si mesma, com a certeza de que o que realmente importava não estava nos olhares alheios, e sim no seu próprio desejo de seguir em frente.
O centro era sempre barulhento. Na Praça Sete, entre buzinas e o grito dos vendedores ambulantes, ela passava firme, a mochila a tiracolo, sem se deixar abalar. O preconceito não era novidade. Às vezes, vinha em forma de palavras cortantes; outras, de silêncios que diziam muito.
Mas entre tudo isso, havia também os sorrisos cúmplices, os clientes fiéis, os colegas de faculdade que lhe passavam anotações quando perdia uma aula para encaixar um atendimento de última hora no salão. Pequenos gestos de afeto que faziam a diferença.
Houve um tempo em que Mirela duvidou que fosse possível chegar até ali. O mundo parecia estreito demais para alguém como ela. Mas a mãe, essa mulher de mãos calejadas e coração aberto, disse-lhe, um dia, enquanto trançava seus cabelos com delicadeza: "Eu tive uma filha. Só demorei a entender". Foi o suficiente. Não apagou a dor dos anos de rejeição, nem tornou mais fáceis os dias duros, mas deu forças para continuar.
Nos finais de semana, entre um descanso merecido e as leituras intermináveis de Direito, ela recebia as amigas em casa. Riam, trançavam os próprios cabelos, trocavam histórias e planos. Falavam sobre os desafios, mas também sobre os sonhos. Cada uma ali conhecia, na pele, o que era ser questionada, olhada de lado, tratada como se não pertencesse ao mundo. Mas pertenciam. Sempre pertenceram.
A graduação de Direito já estava quase no fim. Quando começara, o pensamento era um só: tornar-se advogada e ajudar outras mulheres trans a encontrarem um caminho além da prostituição. Nada contra quem escolhia essa rota, mas ela sabia que muitas não tinham escolha alguma. Queria ser essa opção. Queria mostrar que era possível ser outra coisa, ser tudo o que quisessem ser.
Naquela noite, ao voltar para casa, sentiu a cidade acalmar-se aos poucos. As ruas de Venda Nova iam se esvaziando, as luzes amarelas dos postes piscavam entre a escuridão. Pensou na mãe, já dormindo no quarto ao lado, e no dia seguinte, que traria novos clientes ao salão, novas lições na faculdade, talvez algum novo olhar torto, mas também os mesmos afetos que a sustentavam.
Era Dia Internacional da Mulher (08/03). Muitos ignorariam sua existência, tentariam reduzi-la a algo que não era. Mas Mirela não precisava provar nada a ninguém. Porque era, sim, mulher. E sabia que todas, cis ou trans, merecem respeito. Não apenas hoje, mas sempre. O mundo ainda tinha muito a aprender, mas ela já tinha aprendido. E isso bastava.
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Jornalista