#Cerrado: Por que insistimos em ignorar o bioma que deveria ser a nova estrela do paisagismo urbano?
junho 19, 2025O cerrado brasileiro arde em chamas para o agronegócio, mas não pode ser esquecido. Além dele ser preservado e protegido, esse bioma pode ser lembrado e revitalizado por meio do paisagismo urbano. Enquanto nos maravilhamos com tulipas em filmes europeus ou copiamos paisagismos "Pinterestizados" com lavandas e arbustos japoneses, o segundo maior bioma do Brasil é muitas vezes esquecido. Mas o Cerrado não é coadjuvante. Ele é protagonista.
Não falta beleza, não falta variedade e tampouco falta utilidade. O que falta mesmo é coragem para abandonar o vício da exotização estética e assumir, com orgulho, aquilo que é nosso. A verdade é simples (e incômoda): enquanto importamos espécies com nomes estrangeiros e cuidados complicados, deixamos de lado plantas nativas que resistem a secas, florescem com exuberância e ainda fortalecem a identidade do nosso território.
"Temos no Cerrado uma infinidade de espécies com potencial ornamental, que aliam beleza estética, valor ecológico e identidade regional", explica o engenheiro florestal Eder Marcos da Silva, doutor em Botânica Aplicada e professor de Agronomia da UNA. E ele não está exagerando. Os ipês são apenas a ponta do galho. Há gramíneas, arbustos, árvores, flores, aromas e texturas que poderiam estar reinando absolutos nas nossas praças e calçadas.
Por quê? Porque ainda existe a ideia ultrapassada, colonizada e perigosamente estúpida de que tudo que vem de fora é mais bonito, mais sofisticado, mais digno de ser exibido. Assim, seguimos plantando capim-do-Texas e palmeiras importadas como se o Cerrado não tivesse nada a oferecer. Enquanto isso, o bioma que garante a recarga hídrica, protege o solo e serve de abrigo para espécies endêmicas vai desaparecendo sob tratores, loteamentos e queimadas descontroladas.
O paradoxo é grotesco: destruímos o Cerrado para expandir fronteiras agrícolas e, depois, voltamos aos viveiros em busca de espécies resistentes à seca e ao calor. Spoiler: elas estavam aqui o tempo todo. "Essas plantas são adaptadas ao nosso solo, ao nosso clima, e exigem menos manutenção", explica Silva.
"Elas fortalecem a biodiversidade ao atrair fauna local e resistem melhor às mudanças climáticas". Em outras palavras: são tudo o que as cidades brasileiras precisam para enfrentar um futuro de extremos climáticos. Mas, ao invés de chamá-las para a linha de frente, deixamos essas espécies nativas nos bastidores da paisagem urbana.
E não estamos falando apenas de estética, mas de sobrevivência. A redução das espécies do Cerrado afeta diretamente o equilíbrio ecológico, impactando desde a regeneração do solo até a fauna que depende dessas plantas para viver. A ausência dessas espécies nas cidades reduz a capacidade de adaptação ao clima local, empobrece visualmente o espaço urbano e compromete os chamados "serviços ambientais" que a vegetação presta silenciosamente todos os dias, como oferecer sombra, refrescar o ar e regular a umidade.
É um contrassenso brutal: enquanto a natureza oferece soluções eficazes, resilientes e gratuitas, insistimos em importar paisagens prontas, fora de contexto e, muitas vezes, inviáveis. O paisagismo brasileiro precisa urgentemente romper com essa lógica preguiçosa e assumir o Cerrado não como um cenário a ser explorado, mas como um aliado estratégico, estético e ecológico.
Felizmente, algumas iniciativas estão tentando virar essa chave. A Rede de Sementes do Cerrado (RSC), por exemplo, atua há mais de 20 anos na coleta e distribuição de sementes nativas, em parceria com comunidades locais. É o tipo de ação que devolve ao Cerrado parte do protagonismo que lhe foi roubado.
Mas para que essa transformação se amplifique, é preciso mais: mais políticas públicas, mais envolvimento técnico, mais investimento em viveiros especializados, mais pesquisas sobre propagação e manejo e, sobretudo, mais vontade política e social de fazer diferente.
O engenheiro florestal Eder Marcos da Silva é enfático: "Precisamos romper com a lógica importada e construir uma paisagem mais conectada com nossa identidade e com os desafios ambientais do presente". E ele está certo. A restauração ecológica e o paisagismo urbano não podem mais ignorar o bioma do qual dependem. O Cerrado é muito mais do que vegetação rasteira. Ele é raiz, é força, é história e está sendo destruído em tempo recorde.
Então, antes de pensar em plantar a próxima fileira de grama inglesa no seu projeto urbano, pergunte-se: por que ignorar um bioma que já entendeu tudo sobre resiliência, beleza e funcionalidade? Por que seguir apostando em espécies que pouco ou nada têm a ver com o nosso território, quando há uma diversidade de plantas nativas prontas para florescer e transformar o cenário urbano com identidade e resistência?
O Cerrado não precisa ser reinventado. Precisa ser reconhecido. E antes que ele vire apenas mais uma nota de rodapé nos livros de ecologia, é urgente que o coloquemos no centro do palco. Não só por justiça ambiental, mas porque, muito em breve, vamos perceber que ele era o protagonista o tempo todo.
Se o paisagismo é uma forma de contar quem somos, talvez esteja na hora de parar de falar com sotaque. Vamos plantar Cerrado no paisagismo urbano e, com ele, fincar raízes naquilo que realmente importa: pertencimento, equilíbrio e futuro.
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Jornalista
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