#ReportagemEspecial: Moradores se unem para que o quilombo urbano da Vila Teixeira não desapareça

julho 17, 2019



Por Sílvia Amâncio e Wander Veroni



Um pedaço de rua no bairro Santa Tereza, em Belo Horizonte (MG), onde residem 16 famílias desde a década de 1920, é o novo alvo do mercado imobiliário. Desde o início do mês de julho, os moradores, entre idosos e crianças, seguem angustiados com a ordem de reintegração de posse emitida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

A ameaça de ter que deixar o local onde vivem a qualquer momento é mais um exemplo do descaso do poder público com a história do povo negro na capital mineira e um retrocesso em relação ao direito universal de habitação.

A Vila Teixeira, localizada na Rua Teixeira Soares (região leste da capital mineira), ocupa cerca de 4.000 m² e foi formada, segundo a Associação de Moradores do bairro de Santa Tereza, no início do século XX, por Eliza de Souza, mulher negra, nascida sob a Lei do Ventre Livre (1871), filha de pessoas negras que foram escravizadas da cidade de Além Paraíba (Zona da Mata). Ela migrou para Belo Horizonte em busca de melhores condições de sobrevivência antes de 1915 junto com seu marido, Petronillo de Souza. Nesse mesmo ano, eles  registraram um dos filhos em cartório na capital mineira. 
Abraço simbólico dos moradores da Vila Teixeira. Crédito: Movimento Teixeira Resiste / Arquivo Pessoal. 
O terreno em que construíram sua morada fazia parte da antiga Colônia Américo Werneck e foi adquirido em 1923, conforme contrato de compra e venda em posse dos herdeiros. As famílias ameaçadas de despejo pagam o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) ao município desde o ano de 1955. Por conta desse resgate histórico, os moradores lutam para que o local seja reconhecido como uma área de Quilombo Urbano, com base em certidão oficial de batismo do patriarca Petronillo registrado no “livro de batismo dos escravos”

Esse e muitos outros documentos oficiais já foram encaminhados à Fundação Cultural Palmares (ligada ao Ministério da Cidadania) para fins de reconhecimento do território como remanescente quilombola passível de proteção, com base no Decreto Nº 4.887/2003, que regulamenta a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos e na Portaria FCP Nº 98/2007, que institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos da Fundação Cultural Palmares, também autodenominadas Terras de Preto, Comunidades Negras, Mocambos, Quilombos, dentre outras denominações congêneres. Com isso, a Vila Teixeira passaria a se chamar Quilombo Souza, o que impediria que essas famílias fossem despejadas.

Resistência

Uma das moradoras da Vila Teixeira, Glaucia Vieira, de 53 anos, fala sobre a pressão que estão vivendo com o descaso do poder público e com a presença da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais (PMMG) que irá acompanhar o eventual despejo.

“Tomamos conhecimento desse processo quando um oficial de justiça tirou fotos dos números das casas. Em agosto do ano passado a PMMG cadastrou as famílias e com drones fotografou as casas, passando a informação para o juiz responsável pelo caso. No começo deste ano, a polícia nos procurou dando até março para sairmos, depois abril, depois junho e agora julho para nossa saída”, diz angustiada. 


A moradora conta que as famílias acionaram a justiça para mostrar os erros do processo movido pelos herdeiros da Família Ramos, então proprietária de lotes na área. Gláucia explica que eles venderam alguns lotes e na hora de registrar não excluíram aqueles que já tinham novos proprietários.

“Como só temos o contrato de compra e venda, sem o registro definitivo, eles estão tentando pegar novamente. O processo é antigo, tem mais de 3.000 páginas e o juiz quer dar um fim nisso sem rever nada. Eu nasci aqui, temos raízes, filhos, netos. Nossa memória e identidade é aqui. A luta continua”, declara emocionada. 


Rede de apoio 


O Café com Notícias procurou a Câmara Municipal de Belo Belo Horizonte (CMBH) para saber o que o poder público está fazendo sobre o futuro da Vila Teixeira. A vereadora Bella Gonçalves (PSOL), explica que o Movimento Teixeira Resiste entrou em contato com a Gabinetona, e que de imediato foi formada uma rede de apoio para articulação com o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, a CMBH e a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), com o intuito de ampliar os espaços de diálogos entre a comunidade e o poder público diante das questões que envolvem conflitos fundiários.
Moradores da Vila Teixeira em protesto no TJMG. Crédito: Movimento Teixeira Resiste / Arquivo Pessoal. 
“Realizamos audiências públicas e pedidos formais de informações para a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) sobre a proteção dos idosos e crianças que residem na Vila e a garantia de moradia, já que as famílias pagam IPTU desde a década de 1950, além de organizarmos a defesa judicial com advogados populares. A Gabinetona também atua na questão do resgate da história da comunidade, caracterizada por um quilombo urbano e é um espaço da memória da resistência negra em Belo Horizonte”, diz a vereadora. 


Sobre desafio de avançar com a reforma urbana e a preservação cultural em Belo Horizonte, Bella Gonçalves explica que é preciso reconhecer a cultura viva que existe na cidade e que o planejamento urbano não pode ter um olhar indiferente sobre os quilombos urbanos e as áreas de diretrizes especiais. 


“Convivemos na cidade com os povos tradicionais e eles fazem uso e manejos sustentáveis dos locais que ocupam. Essas pessoas precisam ser consultadas de alterações urbanas que impactam as suas vidas, discutir o direito à cidade, respeitando a diversidade e pluralidade existente, por isso a necessidade de legislação específica, como temos projetos de lei que regulariza os quilombos urbanos em Belo Horizonte e o licenciamento urbano”, explica. 


Atualmente, segundo a vereadora, Belo Horizonte tem duas comunidades (quilombos urbanos) ameaçados por despejos: a Vila Teixeira, em Santa Tereza; e o Quilombo dos Luízes, no bairro Grajaú (Região Oeste), que lutam pelo seu território. 


Quilombos urbanos


Você já parou para pensar o que era ser um escravo no Brasil? Durante mais de 300 anos, a população negra era tratada como “peça”, um objeto vivo que trabalha e não tem direito de existência, muito menos de decidir qualquer coisa relacionada ao seu próprio corpo.

Ao escravo era negado o direito de exercer a sua ancestralidade, seja por meio da cultura, seja por meio da religião. E esse apagamento da sua origem diz muito sobre os resquícios que esta época deixou na nossa sociedade até os dias de hoje. Mas, ser escravo também era sinônimo de resistência à essa objetificação. E foi assim que nasceram os Quilombos, uma resposta ao genocídio por meio da liberdade.

"Quilombos são lugares de gente negra, que resiste à opressão, quase sempre empobrecida, ameaçada em sua dignidade humana, expulsa de suas terras, em busca de sobrevivência. As favelas compartilham esses conceitos. No meu entendimento, os atuais quilombos urbanos são comunidades que nasceram a partir de famílias de negros que, após assinatura da Lei Áurea e a ausência de políticas públicas que garantem aos negros as mesmas oportunidades dos brancos", explica o Padre Mauro Luiz da Silva, de 52 anos, que é Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-Minas e curador do Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos (Muquifu), em Belo Horizonte.


Para ele, a luta dos moradores da Vila Teixeira para se tornar o Quilombo Souza é uma luta de todo o povo negro - uma luta que se confunde com a nossa própria história, onde os nossos antepassados encontravam nos quilombos um local de resistência e liberdade.

"Por isso, essa luta não é só do Quilombo Souza, essa luta é nossa, de todas nós negras e negros, mesmo daquelas e daqueles que não ouvem mais os tambores, que não recorda e não cultuamos mais os deuses dos nossos antepassados. Para o povo do Quilombo Souza e para todo povo negro, a nossa maior dificuldade, a meu ver, é conseguirmos recuperar o tempo perdido. Ou seja, conseguirmos abandonarmos o modelo eurocêntrico, o olhar colonizado que sempre marcou a historiografia brasileira", comenta Padre Mauro.


Apesar dos moradores já terem entrado com documentação para fazer da Vila Teixeira uma área reconhecida culturalmente como quilombola na Fundação Cultural Palmares, eles ainda não acionaram o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) que confirmou, por meio de nota, ser o órgão responsável pela regularização fundiária de comunidades remanescentes de quilombos por meio do Decreto nº 4.887/2003. O processo só pode ser iniciado após a comunidade requerer a abertura ao Instituto, com apresentação da certidão de autodefinição emitida pela Fundação Palmares.


Ainda, segundo o INCRA, tramitam apenas os processos para regularização de três quilombos que encontram-se dentro dos limites municipais da capital: o Quilombo de Mangueiras, na Granja Werneck; a comunidade Manzo Ngunzo Kaiango, no bairro Santa Efigênia; e o de Luízes, no bairro Grajaú.


Resistência


No último dia 11 de julho, foi realizada uma audiência pública pela Comissão de  Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), em que foi denunciado que o processo judicial de desocupação dos moradores da Vila Teixeira é extremamente unilateral e tendencioso, uma vez que ele ignora diversas evidências sobre o direito à moradia, preconizado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e pela Constituição Federal (1988), além de ferir o direito à propriedade, já que as famílias provaram por meio de documentos (contrato de compra, guias de IPTU e Habite-se) que residem no local há mais de 70 anos. 


Procurada pelo Café com Notícias, a Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte (FMCBH) explicou, por meio de nota, que após os quilombos urbanos obterem o reconhecimento da Fundação Cultural Palmares, os locais passam a contar com um acompanhamento sistemático da Diretoria de Patrimônio Cultural, Arquivo Público e Conjunto Moderno da Pampulha (DPAM) da Prefeitura de Belo Horizonte. 


O objetivo é desenvolver ações com finalidades de garantir as condições materiais e simbólicas de existência e reprodução cultural das comunidades tais como: ações educativas; valorização e difusão dos saberes culturais relacionados à festa, apoio na realização do evento a partir de recursos do Fundo de Proteção do Patrimônio Cultural.


Ainda, segundo a nota enviada pela FMCBH, em 2019 a DPAM está organizando um Comitê Gestor de Plano de Salvaguarda. Esse comitê será composto pelos representantes destas comunidades e pelo poder público e terá o objetivo de elaborar um planejamento de ações, de curto, médio e longo prazo, com vistas à promoção da salvaguarda dos modos de vida dos Quilombos Urbanos

Enquanto as autoridades não resolvem essa questão, os moradores da Vila Teixeira seguem na luta para que a história, mais uma vez, não insista em se repetir: negar ao povo negro o direito à propriedade, o direito à cidadania, o direito de existir e viver com dignidade em um país ainda marcado pelos resquícios da escravidão e que se sustenta em uma justiça cega diante da desigualdade social.


A situação dos moradores da Vila Teixeira nos remete às atrocidades do Brasil Colônia com a população negra. Quase duas décadas antes da Lei Áurea, a Lei das Terras proibia que os negros (escravos ou libertos) tivessem terras em seu nome, mesmo que eles conseguissem pagar por esse local ou recebessem a terra por algum tipo de doação ou arrendamento. Fato esse que contribuiu para que, anos mais tarde, a população negra ficasse à margem da sociedade pela ausência de políticas sociais de inclusão.


Voltando para os dias de hoje, mesmo a Lei das Terras não existindo mais, ela ainda insiste em se fazer presente por outras formas. Até o fechamento desta reportagem especial, o despejo das 16 famílias da Vila Teixeira será realizado na próxima semana, mais precisamente no dia 25 de julho, por determinação da justiça. Se isso realmente acontecer, o que será feito dessas pessoas? A única certeza é o silêncio das autoridades.


Reflexão 


Para uma cidade como Belo Horizonte que tem dificuldade em preservar o seu passado, ainda é um desafio manter a preservação histórica e cultural em Santa Tereza diante da especulação imobiliária, já que o bairro é um dos poucos da capital que mantém características originais, relações sociais, de vizinhança, laços comunitários, e por isso a eventual construção de grandes empreendimentos é um apagamento desse modo de vida. 


Nesse sentido, o reconhecimento da Vila Teixeira como um Quilombo Souza é uma ação de resistência do povo negro em seu território e que mais uma vez luta contra um poder social-econômico-jurídico de apagamento de ancestralidade e história.



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