Filme "Que horas ela volta?" mostra dois recortes da mulher nordestina
outubro 04, 2015Foto: Gullane Filmes / Reprodução. |
*Por Sílvia Amâncio
Dois recortes da mulher nordestina:
Val (passado) e Jéssica (futuro). Regina Casé como atriz nos causa espanto
quando lembramos que ela apresenta um dos programas mais conservadores e racistas
da televisão brasileira. Ainda bem que existe o cinema para tentar balancear
esse caos.
No longo da diretora Anna Muylaert, Que
horas ela volta?, a atriz interpreta a humilde, prestativa e
subserviente Val, empregada doméstica nordestina de uma família burguesa
paulista. Junto à família desde que o filho do casal – Fabinho – estava nas
fraldas, mora na casa dos patrões, no famoso “quartinho de empregada”, um
cubículo escondido na parte baixa e serviçal da casa. Abaixo,
assista o trailer:
Val passa o filme inteiro mostrando o
carinho maternal que tem pelo filho dos patrões, ao mesmo tempo em que está há
mais de uma década sem ver a própria filha, Jéssica, que ficou no nordeste aos
cuidados de parentes.
O filme retrata com sensibilidade a
relação maternal e de confiança entre Val e Fabinho, que por diversas vezes
procura abrigo no quarto da empregada. O colo quente de Val e a palavra de
conforto que falta em sua mãe são substituídos pelo afago suave de sua babá.
A trama segue sem alterações na
relação segregada entre patrões-empregados, mas tudo muda quando ela, Jéssica,
decide ir para São Paulo tentar o vestibular para Arquitetura. Nas palavras da
moça, essa profissão “é um instrumento de mudança social”.
A princípio Jéssica se instala no
quartinho de empregada junto com sua mãe, mas ganha a simpatia do dono da casa
e acaba ocupando o quarto de hóspedes. Val se espanta com a atitude desinibida
da filha e percebe consternada que não a conhece, sabe tudo sobre Fabinho, mas
para ela sua filha é uma desconhecida.
A jovem Jéssica, dona de uma
personalidade forte, decidida, de um espírito libertário e progressista começa
a irritar a patroa, primeiro por querer estudar na mesma faculdade que seu
filho e segundo por achar que tem direito, vez e voz na sociedade.
Foto: Gullane Filmes / Reprodução. |
Começa ai o conflito entre mãe e
filha. A jovem nordestina com ideais e a empregada nordestina de meia idade que
se questiona “Onde já se viu filha de empregada sentar na mesa dos patrões?”. A
intolerância vivida da juventude, aliada à inconformidade com a crueldade da
escravidão moderna chamada de “trabalho doméstico”, toma conta da trama.
Jovens, não se enganem. O filme não é
uma comédia de costumes entre patrão e empregada como vem alardeando a velha
mídia brasileira. Trata-se de um filme político, mostrando dois nordestes, duas
mulheres nordestinas de gerações diferentes, transformadas pelos impactos de
políticas públicas de empoderamento, de noção histórica do país, de
pertencimento, de retomada de cidadania da mulher brasileira, antes
desassistida pelo Estado.
A diretora pecou por retratar com
suavidade o que uma empregada doméstica passa dentro de uma “casa de família”.
É muito pior do que ouvir “Você só pode ficar da porta da cozinha pra lá”, como
esbraveja a patroa branca e amargurada pela conquista da filha da empregada.
Em uma cena, a história de abuso se
repete. O patrão passa dos limites com Jéssica, tentando tratá-la com
objetivação sexual. Ela por sua vez não aceita ser tratada como cidadã de
segunda classe, muito menos aceita a forma como sua mãe é tratada pelos
patrões.
Val descobre o orgulho que sente por
ser mãe de Jéssica, e somos brindados com um desfecho libertador e esperançoso
entre mãe e filha, o nordeste de ontem e o do futuro. A dica de outro filme com
essa temática e também brasileiro é Casa Grande, de
2015, dirigido por Fellipe Barbosa.
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*Perfil: Sílvia Amâncio é jornalista, entusiasta da Sétima Arte e de um tanto de outras coisas. Especializada em comunicação em projetos ambientais e especializando em Comunicação e Saúde. Costuma escrever sobre relações viróticas de trabalho, saúde, direitos humanos e mídia, sempre levando para o lado latino-americano e socialista da vida ao sul da fronteira.
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