#ArqueologiaFabular: quando os objetos cotidianos ganham passaporte para o imaginário coletivo
outubro 01, 2025Imagine abrir uma gaveta qualquer e, em vez de encontrar um simples clipe de papel, uma fita de aniversário esquecida ou um botão sem par, deparar-se com uma possibilidade infinita de narrativas. É essa a premissa da instalação Arqueologia Fabular, da artista Juliana Galbetti, que desembarca na 7ª Bienal do Sertão, em Diamantina (MG), com a ousadia de transformar miudezas em poesia e, por que não, em filosofia prática.
O evento, que acontece de 1º a 31 de outubro de 2025, tem como tema “Poesia em Confluência” e reúne nomes nacionais e internacionais da arte contemporânea. No meio dessa constelação criativa, o trabalho de Galbetti desponta como uma provocação deliciosa: será que a vida não é feita de pequenos achados reorganizados no tempo e no espaço?
Criada em 2012, a Bienal do Sertão já se consolidou como uma “bienal de bioma”, itinerante, que viaja por cidades diferentes e assume a geografia como parte da própria curadoria. Em 2025, sob a direção curatorial de Laura Benevides e Janaina Selva, o evento se abre para diálogos múltiplos, atravessando a noção de território, memória e participação.
Nesse cenário, a Arqueologia Fabular não surge apenas como uma instalação, mas como uma experiência sensorial em que o público deixa de ser espectador e se torna coautor. Trio a trio, os visitantes recebem caixas com objetos aparentemente banais: itens de escritório, adereços de festa ou mesmo pertences pessoais, por exemplo, são convidados a criar arranjos que ganham novos sentidos. É quase um jogo de montar histórias, mas com a gravidade e a leveza de um exercício de curadoria coletiva.
Ao mesmo tempo, a proposta carrega um humor sutil e uma crítica sofisticada. Juliana Galbetti se inspira tanto no gesto duchampiano do ready-made – onde o contexto confere sentido, quanto na participação sensorial dos neoconcretos Lygia Clark e Hélio Oiticica. O resultado é uma experiência em que o museu tradicional dá lugar a um “atlas vivo” em constante transformação.
Cada arranjo é fotografado e publicado no Instagram @arqueologiafabular, compondo um arquivo fabular que desafia a fixidez da história oficial. A referência ao Atlas Mnemosyne, de Aby Warburg, reforça essa ideia: a de que símbolos, gestos e imagens atravessam séculos e ressurgem em novas combinações, sobrevivendo como ecos de memória e fabulação. No caso da obra, não há legendas impositivas, mas múltiplas leituras abertas a interpretações inesperadas.
E se a proposta soa sofisticada, ela também é profundamente acessível. Afinal, quem nunca olhou para uma caixa de objetos esquecidos e tentou, mentalmente, dar-lhes algum sentido? Nesse sentido, Arqueologia Fabular brinca com nossa necessidade de classificar e ao mesmo tempo desmonta as gavetas mentais que nos aprisionam.
O público é convidado a perceber que as coisas só existem em relação a outras, e que talvez a vida esteja mais no “entre” – nas conexões invisíveis – do que no objeto em si. O humor aparece justamente nessa quebra de expectativas: aquilo que era banal se torna precioso, o que era resíduo ganha status de metáfora, e o que parecia invisível passa a ser o protagonista da cena.
Dentro da Bienal, que se espalha pelo Museu do Diamante, Teatro Santa Izabel e UFVJM, a obra de Galbetti dialoga com preocupações comuns aos artistas desta edição: arquivos vivos, memórias em disputa, territórios poéticos e práticas descoloniais que desconstroem narrativas hegemônicas. É nesse caldo de pluralidade que a Arqueologia Fabular se destaca, abrindo espaço para uma escuta atenta e participativa.
Ao propor que o público se torne arqueólogo de seu próprio tempo, Galbetti faz com que a arte atravesse a vida cotidiana sem pedir licença, como um lembrete de que até o mais singelo objeto pode carregar camadas de história, desejo e invenção. Em tempos digitais, acelerados e pré-formatados, essa experiência se torna um respiro – uma oportunidade de rir, questionar e reorganizar o mundo com as próprias mãos.
Assim, o que nasce como um jogo entre caixas e objetos transforma-se em uma metáfora poderosa para a própria arte contemporânea: um espaço de encontros, de desencaixes e de fabulações que resistem à lógica da obviedade.
Em Diamantina (MG), a cidade que já guarda em suas pedras a memória do barroco e da mineração, a Arqueologia Fabular chega como quem oferece um espelho invertido: em vez de procurar diamantes, é no botão perdido, no pedaço de fita e na caneta esquecida que a poesia se esconde. E talvez seja exatamente essa a lição mais preciosa da obra: a de que o extraordinário, muitas vezes, está disfarçado de banal.
Gostou do Café com Notícias? Então, acompanhe o canal no Telegram e siga o blog no Instagram, no Threads, no Facebook, no LinkedIn e assine a nossa newsletter.
Jornalista
0 comentários