#CaféEntrevista: Superação e perseverança marcaram a trajetória de mulher trans e funcionária da ONU
junho 28, 2021Ela é a pessoa que tem o cargo mais alto na Organização das Nações Unidas (ONU) a ser ocupado por uma mulher trans: essa é Ariadne Ribeiro. Mas, a jornada para chegar até a posição em que se encontra hoje, não foi nada fácil. Ariadne já passou por uma série de agressões físicas e verbais, abuso sexual, HIV e prostituição. A virada foi difícil e só foi possível a partir da educação e de muita força.
"Nunca fui de me colocar como uma vítima da sociedade. Eu seguia o conselho da minha mãe: engole o choro e vai. Mostrar fragilidade diante do inimigo é uma fraqueza", conta. Assessora de apoio comunitário do UNAIDS, programa da ONU que objetiva o fim da AIDS através da redução das desigualdades, @ariadneribeir19 é uma das personagens do programa Falas de Orgulho, especial que a TV Globo exibe no próximo dia 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. Abaixo, assista a chamada que conta um pouco desta história:
Com jeitos, gostos e expressões femininas, Ariadne conta que sempre soube que era uma mulher. Aos quatro anos de idade, a paulistana já começou a questionar sobre o seu corpo. A partir dos 11, com sua identidade de gênero mais aflorada, foi quando começaram os abusos.
Com a mãe pouco presente, ocupada com o trabalho e tarefas domésticas, Ariadne encontrou na irmã mais nova o seu primeiro acolhimento. "Eu falava 'acho que Deus me fez errado porque eu sou uma menina' e ela me abraçava. Esse era o nosso segredo'", revela.
Já na época da escola, Ariadne lembra que chegou a ser espancada por conta de sua aparência mais feminina, episódio que a fez desistir dos estudos por um tempo. E foi só com muita perseverança que ela conseguiu concluir o ensino médio e conquistou bolsa para a faculdade. Hoje, graduada em pedagogia, com mestrado e doutorado em psiquiatria, a assessora da ONU relembra a luta de procurar emprego sendo uma pessoa trans.
"O momento de apresentar a documentação era um problema muito grande porque, independente do quão competente eu fui nesse processo seletivo, quando a pessoa via um nome masculino no meu RG, eu era descartada sem possibilidade de reconsideração", finaliza. Na entrevista abaixo para o Café com Notícias, Ariadne conta sua trajetória e comenta as diferentes camadas de preconceito que sofrem as pessoas LGBTQIA+. Confira o bate-papo:
1) Conte um pouco sobre a sua história e sobre quando começou a se entender LGBTQIA+. O que mais te marcou?
Comecei a questionar a minha sexualidade aos quatro anos de idade, quando a minha irmã nasceu. E foi como se eu tivesse me reencontrado. Antes dela, eu só tinha um irmão mais velho e brincar com ele era muito difícil, eu não gostava. Já brincar com a minha irmã era a forma que eu tinha de esquecer de tudo. Eu falava: "acho que Deus me fez errado porque eu sou uma menina", e ela me abraçava. Esse era o nosso segredo.
À medida que fui crescendo, a minha identidade de gênero foi se aflorando mais. E aí começaram os abusos. O meu padrasto me abusava física e psicologicamente. Essa foi uma época muito difícil pra mim. Aos 13 saí de casa e fui morar com a minha avó. Ela era muito à frente do seu tempo e tinha uma amiga trans, a Zezé, que era cabeleireira e chegou a precisar se prostituir para conseguir pagar as contas. Sumiu por um tempo e, quando reapareceu, estava linda, casada e morando no exterior.
Ela me contou essa história para me mostrar a dura realidade que eu teria de enfrentar, mas ao mesmo tempo ela não queria que eu perdesse a esperança de um final feliz. Eu sempre me senti mulher e sempre tive expressões muito femininas. E foi por isso que fui tão espancada na minha infância. E era algo que eu não conseguia controlar, simplesmente pela expressão natural de quem eu era.
2) Quando criança, mais nova, você chegou a passar por alguma situação na escola?
Sim, com 13 anos eu já tinha uma aparência muito feminina e isso causou problemas na escola. Teve um dia em que fui espancada, espancada mesmo. Fiquei quase desacordada na porta do colégio. Foi um bafafá tão grande que eu parei de estudar. E só voltei anos depois, pelo Telecurso. Eu sempre gostei de estudar, sempre fui CDF, nerdzinha.
Fiz a prova de conclusão do ensino médio, conferi as respostas e eu tinha ido muito bem. Quando fui buscar o resultado, a minha prova tinha sido cancelada porque eu tinha assinado com o meu nome social. No ano seguinte, fiz a prova novamente e eu estava tão preparada que passei no vestibular e ainda consegui bolsa integral para cursar pedagogia.
3) Na sua avaliação, como as pessoas transgênero são vistas dentro da nossa sociedade?
As vivências das pessoas trans são únicas, cada um tem a sua. Eu sempre tive uma boa passabilidade, o que me trouxe coisas positivas e negativas. Tem o lado "positivo", já que confere uma repressão menor da sociedade contra você.
Mas, ao mesmo tempo, tem o lado negativo, o da "surpresa" das pessoas quando "descobrem". E essa surpresa vem com uma discriminação muito forte, como se você estivesse enganando as pessoas. Era muito difícil o momento em que elas olhavam para o meu RG e viam um nome masculino. Isso gerava muito constrangimento.
Na hora de procurar emprego, por exemplo, o momento de apresentar a documentação era um problema muito grande porque, independente do quão competente eu fui no processo seletivo, quando a pessoa via um nome masculino no meu RG, eu era descartada sem possibilidade de reconsideração. Mas, nunca fui de me colocar como uma vítima da sociedade. Eu seguia o conselho da minha mãe: engole o choro e vai. Mostrar fragilidade diante do inimigo é uma fraqueza.
4) Qual é a sua visão da luta LGBTQIA+ atualmente? O que falta conquistar?
Primeiro, a gente ainda tem que lutar muito pelo respeito, pela nossa existência. Isso é sintomático de uma sociedade que não supera o período colonialista. São pessoas que querem colonizar outras, que acham que têm direito sobre outras. E isso vai desde prescrever o que é homem e o que é mulher na sociedade até o que é ser LGBT.
A complexidade da diversidade é inaceitável para quem precisa impor regras para a maneira como o outro vive. Em uma sociedade que sempre foi oprimida e aprisionada em regras e ditames morais, o sonho do oprimido é ser o opressor. Então, ela reproduz essa violência.
É inconcebível que ainda existam pessoas que tentam usar a religião para ofender outras pessoas pela forma como elas são. É inconcebível que ainda tentem nos inferiorizar. É inconcebível que a gente ainda tenha a necessidade de forçar a justiça a nos dar nossos direitos. Acho que a nossa luta ainda nem começou.
➤ No vídeo abaixo, assista o manifesto do especial "Falas de Orgulho":
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Jornalista
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