Café Convidado – Pesquisadora afirma que a personagem Linda, de Amor à Vida, não é autista
janeiro 22, 2014Foto: TV Globo / Reprodução. |
Na seção Café Convidado desta semana, a psicóloga e pesquisadora da Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar), Ana Arantes, afirma que a personagem Linda, vivida pela atriz Bruna
Linzmeyer, da novela Amor à vida,
não tem as características de uma pessoa com autismo. Por meio do artigo dela é possível entender um pouco mais sobre esta doença, como se dá o tratamento e o
acolhimento da família. Abaixo, confira
o texto:
E a moça autista da novela, hein?
*Por Ana Arantes
Eis
que, de repente, minha caixa de e-mail começou a lotar com mensagens de gente
perguntando qual é a da moça da novela…
“Mas
uma pessoa autista é daquele jeito mesmo?”
“Um
autista pode namorar?”
“Pode
isso, Arnaldo?”
(Não
exatamente assim, mas meio por aí…)
Vamos
começar esclarecendo só o seguinte:
1. A personagem da novela
Amor à Vida, a Linda, NÃO É AUTISTA, ok? Apesar do autor “querer” retratar um
indivíduo com Transtorno do Espectro Autista (TEA), as características
demonstradas pela Linda no desenvolvimento da personagem são confusas e muitas
vezes jamais se enquadrariam nas características de pessoas com TEA…
2. Pessoas autistas têm
uma imensa variedade de características, diferentes de indivíduo para
indivíduo. Cada uma terá determinadas características diferentes das outras.
Principalmente, há GRAUS variados de comprometimento desde um autismo leve (que
a gente chama de “alto funcionamento”, porque geralmente não impede que a
pessoa tenha uma vida relativamente “normal” e produtiva) até graus bem
severos, em que há muito comprometimento das funções cognitivas, da comunicação
e dos comportamentos.
3. O tratamento
psicológico da Linda, como foi mostrado na novela, dá vontade de chorar. Sério:
quantas vezes mesmo a gente viu o Psicólogo-da-Novela em sessão terapêutica com
a Linda? Eu contei três. E em NENHUMA delas o que foi mostrado chega nem em
sonho perto do que é realmente o tratamento adequado para autismo. Teve uma
cena em que o profissional segurava um cartaz
e dizia pra Linda: “Olha aqui, é assim que arruma a cama. Hoje você vai
arrumar a cama, tá?” E daí a Linda ia lá e arrumava a cama… Not even in your
wildest dreams que uma pessoa com comprometimento cognitivo severo – como era o
que a personagem demonstrava naquele ponto da trama – ia adquirir uma
habilidade tão complexa como arrumar a cama só de olhar pra um cartaz, ok???
ISSO NON ECXISTE!!!!
4. O desenvolvimento
cognitivo, social e comunicativo da personagem deu um salto imenso desde que
ela começou a ser tratada (em três sessões!) pelo Psicólogo-da-Novela. Não é
beeeeeeeeeeem assim que acontece… O tratamento do autismo é feito por
diferentes profissionais: psicólogo, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, Terapeuta Ocupacional,
neurologista, psiquiatra, e mais um monte de gente. E é um tratamento
intensivo, todo dia, o dia inteiro, e envolve também os pais e os cuidadores da
criança. Se iniciado precocemente, quando a criança é bem pequenininha, o
desenvolvimento pode ser quase igual ao de uma criança típica em algumas áreas.
Mas quanto mais tarde o tratamento é iniciado, mais lento é o resultado.
5. Aí o Advogado-Gato
apareceu, deu um monte de tintas, pincéis e cartolinas pra ela, e OLHA SÓ:
praticamente CUROU o TEA da Linda. Só pra deixar BEM claro: amor só cura
dor-de-cotovelo e DPPnB (Depressão Pós Pé-na-Bunda), ok???
(Disclaimer:
Arteterapia é um tipo de terapia de suporte válida e embasada em evidências.
Dar um monte de guache para um indivíduo autista e falar “pinta aê, meu filho!”
NÃO É ARTETERAPIA!!!!)
Mas…
mas… mas…
Ora?
Direis… Ouvir estrelas? Não, péra!
Mas
afinal, O QUE É AUTISMO?
Bear
with me.
O
autismo é uma síndrome (aka, conjunto de sintomas) que compromete três áreas do
desenvolvimento:
a) Comunicação/linguagem
fica seriamente comprometida, com grandes atrasos na compreensão e na produção
da fala. Alguns autistas têm falas inadequadas e repetitivas (ecolalia), fora
de contexto e muitas vezes desconectadas da realidade.
b) Socialização: pessoas
com TEA têm extrema dificuldade de manter contato social com outras pessoas.
Bebês autistas não fazem contato visual e não conseguem manter atenção conjunta
– se você apontar para um objeto, a criança vai olhar para a ponta do seu dedo
e não para onde você está olhando e apontando. Muitas vezes os autistas relatam
que não conseguem entender sinais de emoção nos outros, ou não conseguem
entender e expressar suas próprias emoções e sentimentos. E a gente sabe que
“são tantas emoções”… (Desculpa, não resisti.)
c) Os comportamentos de
pessoas autistas podem ser extremamente inadequados à situação e inapropriados.
Não é incomum acontecer comportamentos abusivos ou auto-lesivos, em que a
pessoa pode se machucar sério se não for contida.
Foto: TV Globo / Reprodução. |
Também
é comum que pessoas dentro do espectro autista tenham interesses restritos por
algum tipo de objeto ou assunto, e alguns casos raros isso pode gerar uma “super
especialização” ou alta habilidade, por exemplo, o cara se torna um virtuose do
piano, ou é contratado pela CIA para descobrir códigos secretos. (Por favor,
atenção ao adjetivo RARO. Obrigada.)
Então,
de modo geral, o TEA (você vai achar por aí as nomenclaturas Transtorno
Invasivo do Desenvolvimento, Transtorno Global do Desenvolvimento ou Transtorno
Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificação, porque o nome varia de
acordo com o manual que você usa, mas é tudo praticamente a mesma coisa) é uma
condição que compromete todo o desenvolvimento do indivíduo, porque seres
humanos têm a incômoda mania de aprender coisas uns com os outros.
Mas
se o bebê já nasce com uma dificuldade de manter contato visual e atenção
conjunta, fica difícil ensiná-lo a falar mamãe, a pegar o nariz do papai, a
identificar quando a tia está sorrindo e sorrir de volta… e assim por diante,
comprometendo todo o desenvolvimento cognitivo do indivíduo.
Provavelmente
por isso – a gente ainda não sabe com certeza absoluta, mas a hipótese é boa –
há uma grande diferença entre autismo e déficit cognitivo.
Bem…
Todo esse preâmbulo pra chegar no assunto da semana, que é: “Mas e aí, o que
você acha da moça autista da novela namorar?”
Eeeeeeeeeeeeerrr…
Olha, é complexo.
DO
JEITO QUE ESTÁ NA NOVELA, ou seja, uma MENINA com sério comprometimento
cognitivo e de comunicação, se envolvendo com UM HOMEM adulto, com
desenvolvimento típico, provavelmente bem mais velho, e sem o consentimento da
família: NÃO.
Fácil
assim.
[Que
parte de "uma MENINA que não é capaz de tomar decisões plenas se
relacionando com um HOMEM mais velho e em situação de poder privilegiada"
você acham que pode ser discutida?]
Ok.
Bola para frente.
Como
o autismo (assim como a deficiência cognitiva) tem vários graus, e cada
indivíduo se desenvolve de maneira única, as coisas têm que ser analisadas caso
a caso com muito cuidado e bom senso.
Muitas
coisas deviam ser levadas em consideração em casos como esse: qual o grau de
comprometimento cognitivo dessa pessoa? Ela consegue tomar decisões sozinha?
Ela tem habilidade para pesar todas as consequências de suas decisões? Qual o
grau de desenvolvimento emocional dessa pessoa (ou das duas envolvidas)?
Há
uma relação de poder e de “capacidades” muito desbalanceada entre as pessoas
envolvidas? Esse relacionamento deve ser constantemente monitorado pelos pais e
cuidadores ou o casal pode ter certo grau de autonomia e “intimidade”? E mais
um monte de coisas…
Foto: TV Globo / Reprodução. |
A
pessoa com TEA não têm necessariamente o desenvolvimento emocional
comprometido, é claro que elas podem se apaixonar e ter um relacionamento
romântico e/ou sexual saudável com outra pessoa.
Há
várias pessoas autistas casadas, pais e mães de família, que se dão muito bem
obrigada com ou sem apoio externo. Mas há sim, e muitos, casos em que o autista
precisa de supervisão e apoio constante até na idade adulta, porque ele não tem
habilidade de tomar decisões complexas sozinho, ou não consegue se comunicar com
eficiência, ou mesmo porque seu grau de desenvolvimento cognitivo não permite
que ele seja considerado “capaz”
legalmente.
Pois
é, tem mais essa questão da “capacidade legal“: pessoas com comprometimento
cognitivo são consideradas como crianças pela lei. É o tal do “incapaz”, ou
seja, a pessoa é “incapaz” de consentir com o avanço romântico e sexual de
outra pessoa.
Essa
lei foi feita para proteger crianças e pessoas que não têm habilidade cognitiva
suficiente para tomar decisões adequadas. Por um lado ela ajuda, mas por outro,
pode atrapalhar quando o indivíduo, apesar do déficit cognitivo, é sim capaz de
tomar decisões, mesmo que ele precise de ajuda e suporte profissional ou da
família.
Então,
tudo tem que ser analisado com cuidadinho… e cada caso é um caso.
É.
Tudo depende. Bem vindo ao mundo real, em que as coisas têm vários tons de
cinza (UÔU!) e não são só preto ou branco.
- Sugestão:
leia esse post
da Verinha da Silveira no blog "Feminismo Sem Demagogia"...
Bacana, com muita informação e entrevistas com mães de pessoas com TEA.
- Outra
sugestão: esse outro
post do Professor Celso Goyos no blog "Vamos falar sobre
autismo" para esclarecer dúvidas sobre o diagnóstico e o tratamento do
autismo. Sim, ele é meu supervisor de Pós-doutorado e esse é o blog do Lab onde
eu trabalho.
_____________________________
*Perfil: Ana Arantes é psicóloga formada pela
UFSCar, com mestrado em Educação Especial e doutorado em Psicologia:
Comportamento e Cognição. Atualmente é pesquisadora de pós-doutorado do
LAHMIEI-UFSCar e professora do curso de Pós-graduação Lato sensu em Análise do
Comportamento Aplicada ao Autismo. Este texto foi publicado originalmente no Blog
O Divã de Einstein.
- Para participar da seção Café Convidado, do blog Café com Notícias, basta enviar para o e-mail wander.veroni@gmail.com com um material de sua autoria. Pode ser uma reportagem (texto, áudio ou vídeo), artigo, crônica, fotografias, peças publicitárias, documentário, VT publicitário, spot, jingle, videocast ou podcast. Mas, atenção: pode participar estudantes de Comunicação Social (qualquer habilitação: jornalismo, publicidade, relações públicas, marketing, Rádio e TV, Cinema, Produção Editorial e Design Gráfico), profissionais recém-formados ou profissionais mais experientes de qualquer outra profissão. Participe e seja meu convidado para tomarmos um Café! OBSERVAÇÃO: Por ser editor responsável pelo Café com Notícias, o material enviado está sujeito a sofrer edição final para adequação da linha editorial abordada neste espaço.
Gostou do Café com Notícias?
Então, siga-me no Twitter, curta a Fan Page no Facebook, circule o blog
no Google Plus, assine a newsletter e participe da comunidade
no Orkut.
Jornalista
0 comentários